segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Um sábado com fotos, Michel Poivert e reflexões




  Aquela imagem projetada no fundo do palco do Teatro Álvaro de Carvalho, de uma laranja quase toda mofada, com apenas algumas partes da casca ainda na cor original, sendo que o resto era tomado por um branco que se esverdeava em algumas partes, enrugada como pele de senhora de idade, ficou rondando meus olhos enquanto esperava por Michel Poivert. Doutor em história da arte, o Francês é professor de história da arte contemporânea e da fotografia na Universidade de Paris, foi presidente da Société Française de Photographie, é membro do comitê de redação da Revue de l’Art e da Revue Études photographiques. Na platéia mais de 60 pessoas esperavam para ouvi-lo e, é fácil afirmar, todos apaixonados pela fotografia. 

   A presença do professor Francês foi promovida pelo Duo Arte e produção, e integra o Floripa na Foto. A palestra se intitula “A fotografia contemporânea: uma corrente artística ou cultural?” num sábado, dia 26, abordou de forma geral, as produções contemporâneas a partir da década de 1980, tentando explicar a estrutura da fotografia contemporânea de um ponto de vista histórico e crítico, insistindo notadamente sobre as relações das novas imagens com as questões próprias da modernidade, da história da arte e da informação. 

  Contemporânea... A que? Talvez esse questionamento resuma bem a abordagem de Poivert sobre fotografia na modernidade. A capacidade mutante que a fotografia tem, reinventando usos ao longo de sua história e da história da sociedade humana, a perspectiva de fotografia como arte é o inicio da abordagem do Francês, que afirma: A fotografia é contemporânea da arte. É claro que nessa abordagem Poivert não encerra um entendimento global sobre fotografia na visão da contemporaneidade, mas ilustra, com a fotografia experimental entre os anos 70 e 80, a busca por reproduzir os paradigmas artísticos, da pintura e da escultura, nos trabalhos fotográficos. 



 No fotojornalismo Poivert observa o fenômeno da estetização e da padronização da imagem jornalística, inclusive com a mesma reprodução de simbologias da pintura e da escultura – Pietás, cristo crucificado, naturezas mortas, retratos, etc. Bem como nas referência iconográficas e em uma construção semiótica da imagem jornalística.  Tal referência ainda vigora até hoje como um modelo de fotografia com peso artístico, premiada e reconhecida. Basta lembrar do vencedor do Picture of the Year desse ano, o fotojornalista espanhol Samuel Aranda, e sua Pietá do Yemen. Podemos ir mais longe um pouco na história da fotografia, e lembrar a famosa foto da menina queimada na guerra do Vietnã, feita pelo fotógrafo Huynh Cong "Nick" Ut, da Associated Press, que reproduz um cristo crucificado, imagem clássica da arte ocidental, que de certa forma pode explicar, além do peso dramático e histórico, seu sucesso. Esses exemplos reforçam a idéia de Poivert das incursões da fotografia pelas referências artísticas em seus diversos campos de atuação. A estetização da imagem também é um sinal da busca dos fotojornalistas por uma construção imagética que não só encerre o propósito do ofício de informar. Pode-se afirmar que a estetização complementa o processo de informação obtida através da imagem fotográfica, se não a sobrepõe. Poivert citou Sebastião Salgado como exemplo de estetização da imagem informativa, de denuncia social. Sem entrar no mérito de que se esse cuidado com a beleza da imagem ofusca a crítica, o exemplo de Salgado, citado por Michel, serve como referência de uma visão da fotografia que se vale dos paradigmas artísticos clássicos para se reinventar, ou mesmo galgar seu espaço como forma de expressão artística no mundo da arte.

 Mas a fotografia continua a galgar novos espaços de experiência. Michel citou a retomada da fotografia documental nos anos 90, também como forma de resgate, revisitação de velhas roupagens, reinventadas ao longo do processo de afirmação da fotografia na história social humana, até a busca nos anos 2000 por um híbrido da história, agregando novos referenciais. Poivert falou sobre fotógrafos que buscam inspiração em cenas comuns a psicanálise e a publicidade. Falou sobre a teatralização da fotografia, buscando referências nas artes cênicas. "No século 19 se posava pela necessidade de um longo tempo de exposição, hoje se posa por uma necessidade de teatralidade fotográfica."

 O que se pode acumular da fala de Michel Poivert, que se soma a autores como o também Francês, Andre Rouillé, na busca por encerrar algum entendimento sobre a fotografia por um ponto de vista da história, é que a fotografia acompanha as mudanças das sociedades humanas, não só físicas, mas culturais, afetivas e intelectuais. Para Poivert, a fotografia “propõe uma obra do modernismo, pensa o valor da arte e fala da relação do real e do imaginário humano”. A fala do professor se restringiu a uma abordagem de um recorte de 30 anos, 1980 até 2010, mas está contida nesse recorte uma essência histórica da fotografia que denuncia suas tendências, sua dinâmica. É como falássemos de o quanto muda a forma como vemos o mundo de acordo com o tempo, espaço e contexto, e como se procede essa dinâmica no ser humano. A proposição de Poivert guarda também uma característica fundamental para mim no pensar a fotografia: A de que é um reflexão filosófica, mais do que de ordem histórica, cultural ou técnica. O que vemos? O que fotografamos? Porque fotografamos? São perguntas tão amplas como as que a filosofia propõe. No final, a laranja podre, projetada como capa da palestra de Michel, pode ser levada a esta reflexão filosófica, e acabo por pensar que aquilo que se degrada, volta a natureza, e aquela imagem estática, congelada de uma dinâmica, que é a degradação, acaba por me levar a considerar o tempo como não tempo, e a fotografia como meus olhos que vêem um mundo diferente todos os dias.       

Texto e fotos:

Osíris Duarte
Jornalista -Mte PB 02538

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Casa Grande e Senzala e a subserviência no mundo do trabalho




  Negrinho, já pro tronco! Gritava o capataz com veemência condizente a subserviência ao Coronel. Enquanto isso, ao lado da senzala, de canto olhava a negra da casa, cozinha, lava e passa, brinquedo manso do senhor. No canto escuro, em correntes, sonhava o negro cheio de medo, com a misericórdia da aceitação na casa e não do tronco. O capataz, com a tez tão negra quanto a do escravo, chicoteava o dorso escuro da mão de obra, pensando no almoço na cozinha da Casa Grande e na cachaça no bar da fazenda. Aquilo atenuava a dor nos braços das dezenas de chibatadas que desferia no corpo dos irmãos de África.  
  A cena, comum a nossa consciência histórica brasileira, se repete, se reinventa e se renova, com novas roupas, novos personagens, mas com o mesmo enredo. Não é de hoje que nos ensinam a escolher o mais fácil em detrimento do certo, do justo. É que justiça como conceito só existe na coletividade, porque só se ajusta aquilo que têm parâmetro, têm contraponto. O isolamento apaga a necessidade de justiça. Desde a senzala, a moeda de cooptação para manutenção é a ilusão do conforto. Porque quando a escravidão - nos moldes antigos - acaba, acaba também o conforto da cachaça do capataz, assim como o almoço na Casa Grande.   

Osíris Duarte - jornalista

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Salvar os Guarani-Kaiowá?



Aprendi com meu irmão, há muitos anos, que não há nada pior no humano do que a hipócrita (por vezes não intencional) musculação de consciência. E isso é coisa que acontece muito no meio daqueles que estão no topo ou no meio da pirâmide social. Olham para o sofrimento dos pobres - a comunidade das vítimas do sistema - como se fossem coitadinhos, e sentem pena. Podem até chorar diante de uma foto ou de uma dada situação. E desde sua pena, buscam ajudar, musculando a consciência. Um quilo de arroz numa campanha para vítimas da enchente, um agasalho para as entidades filantrópicas, uma doação ao “criança esperança”. Depois, consciência musculada, voltam a vida normal, certas de que fizeram tudo que podiam fazer. Arrisco dizer: isso não é suficiente. Apazigua a consciência, mas não muda as coisas.

Detectei essa reação nesses dias em que se resolveu prestar atenção ao sofrimento indígena. Um grupo de índios Guarani, do Mato Grosso do Sul, que desde há 500 anos vêm observando a estranha mania dos cristãos – seus dominadores - em se purificar no sacrifício, resolveu expor a chaga aberta do sofrimento de sua gente numa concreta vivência sacrificial. Ou lhes deixam viver nas suas terras, ou se matam, em grupo. Ato extremo, sofrimento extremo, decisão extrema. Então, como que atiçados pelo sempre excitante momento do sacrifício, as gentes brasileiras decidiram começar a falar do “absurdo” que é essa desesperada decisão. Assim, terminada a novela das oito, que segundo algumas vozes “parou o país”, agora as redes sociais e todos os que têm espaço de voz nos meios começaram a discutir a questão dos Guarani que estão prometendo se matar. Sinto aí certo cheiro de musculação de consciência.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul não é o primeiro nem será o último. Desde o momento em que os povos originários perceberam que a cruz e a espada que chegavam com os homens do além-mar eram armas de opressão, a luta pela manutenção do direito de viverem na sua terra, com seus deuses e do seu jeito, começou. Ao longo dos anos, com a colonização europeia, milhões de pessoas foram assassinadas, das formas mais cruéis, simplesmente porque atrapalhavam o caminho para o ouro e as riquezas do novo mundo. Essa gente desesperada que hoje grita em agonia por um naco de terra onde descansar a cabeça, é a mesma gente que antes da invasão aqui vivia em fartura, nas grandes cidades como Tenochtitlán, Cuzco, Tiuahanaco, maiores e mais populosas que Madrid, Lisboa ou Florença no mesmo tempo. Eram homens e mulheres que conheciam a astronomia, a matemática, a hidráulica, a engenharia. Eram os que experienciavam uma forma de vida comunitária, na qual ninguém passava fome, no mesmo tempo em que na Europa medieval as pessoas padeciam de fome crônica. E foram eles os considerados sem alma, os passíveis de todo o tipo de selvageria e escravidão, porque não falavam a língua espanhola ou portuguesa e professavam outra fé, na variedade dos deuses.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul é o mesmo grito do cacique da etnia Taíno, Hatuey, que, em 1511, poucos anos depois da invasão, ao descobrir que o deus verdadeiros daqueles homens era o ouro, viajou desde o Haiti até a ilha de Cuba, com 400 guerreiros, para avisar que o que chegava pelo mar era a destruição. Não foi escutado. Mesmo assim se dispôs a lutar contra os espanhóis e só parou quando foi capturado e morto na fogueira. Foi vencido pela força dos arcabuzes, tendo seu povo sido dizimado em castigo. Esse grito segue aí. Também continuam ressoando os gritos de Cuauhtemotzin, no México, quando em 1520 igualmente iniciou a resistência contra os espanhóis que haviam assassinado milhares na cidadela de Montezuma, e os de Ruminahuia, que na região de Quito também se levantou em rebelião contra os que queriam destruir seu mundo e o dos seus. E o que dizer dos Tamoios no Brasil de 1562, que chegaram a constituir uma confederação para enfrentar a vilania portuguesa?

Pois essa gente tem gritado, lutado, batalhado, peleado desde os primeiros momentos da invasão. E, desde sempre esses gritos foram abafados, porque os indígenas não eram vistos como seres capazes de gerir suas vidas. Eram homens e mulheres dominados que tinham de se render calados e servis. Só que nunca foi assim. A batalha pelo continente segue aí, desde então.

Mas, como sempre acontece, os vencedores impõem suas razões. Os povos indígenas foram dizimados em nome do progresso e do bem estar dos invasores. Os que valentemente sobraram acabaram confinados em reservas, ora como bichos raros, ora como coitadinhos e incapazes. Integrar o índio à sociedade passou a ser o mantra dos caridosos vencedores. E os que acreditaram no engodo já viram o que sucedeu. Incorporados a uma sociedade racista, patriarcal, capitalista, seguem sendo vistos como seres inferiores, mesmo os que chegaram aos mais altos postos da estrutura social. Índios, os seres sem alma.

Há poucos anos o país acompanhou a polêmica da reserva Raposa Terra do Sol, uma imensidão de terra indígena que os originários lograram garantir para si. Quem não se lembra dos ferozes argumentos da distinta sociedade pensante? “Para quê tanta terra para índios? O que eles vão fazer com isso? Vão destruir tudo e vender as madeiras.” Esse era o diapasão dos caridosos brasileiros. E as batalhas pela região do Xingu que estão aí, se arrastando há anos, sem que ninguém se apiede das almas das gentes que vão perder seus rios, seus deuses, seu território em nome de uma barragem para gerar energia aos estrangeiros. E os mesmos piedosos argumentam que “essa gente” (os índios) é o atraso, a decadência, o anacrônico, incapaz de ver a importância do progresso que virá com a devastação da Amazônia.

É que esses índios são os que, por estarem em grandes grupos e articulados com movimentos sociais, lutam. Travam a boa batalha contra a destruição do seu modo de vida. E como valentes guerreiros precisam enfrentar as armas inimigas que já não são só arcabuzes e cavalos. Vêm acompanhadas da mídia que fortalece pré-conceitos e visões pré-determinadas do poder. Esses, os “arruaceiros”, não são dignos de piedade por parte da sociedade que fica em frente à TV musculando sua consciência.

Então, das entranhas do cerrado mato-grossense, um pequeno grupo de Guarani-Kaiowá, que luta desde há anos por demarcação das terras, sofrendo violência, mortes, assassinatos, desaparição e o sistemático suicídio de seus jovens guerreiros, resolve usar a última arma que lhe resta: o próprio corpo, sua humanidade, o corpo coletivo de toda a gente. O drama dessas famílias vem sendo denunciado ano após ano pelos Cimi, por jornalistas, por estudiosos, por todos os que se importam, mas nunca tocou o coração das maiorias. O ataque diário dos fazendeiros, a violência da justiça local que não os escuta, o preconceito e o ódio dos que vivem na cidade, picados pela ideia de que os índios só atrapalham o progresso, tudo isso é tema de debate e denúncia nos fóruns de luta social. Mas, nunca houve piedade. As terras seguem sendo griladas, roubadas, subtraídas dos índios. A vida foi se extinguindo, o espaço se apequenando. Foi preciso um ato extremo, uma decisão de desespero, para que a nação se voltasse para esses que são os cordeiros de um novo sacrifício. Agora sim é a hora da compaixão. Os “atrasados” não estão armados, não estão em luta, não fazem arruaça. Eles desistiram. Não têm mais força. São muito poucos, estão sozinhos. Eles desistiram. Já não são mais “perigosos”. São apenas as ovelhas do sacrifício. Eles desistiram. Estão vencidos. Então, por esses sim, podemos rezar, chorar, nos apiedar. Sepulcros caiados. Sociedade apodrecida.

Arrisco dizer que os Guarani-Kaiowá sabem muito bem dessa hipocrisia ocidental, dessa pantomima que os piedosos gostam de fazer para parecerem bons. Ah, eles conhecem essa psicologia desde há 500 anos. E, agora, se valem disso para expor o seu drama e para testar a “bondade” branca. Mas, eles não estão brincando. Seu grito de agonia ecoa anos a fio. Nada nunca foi feito. Já basta. Não há sentido viver quando a vida não pode se fazer real. Diante de uma justiça que protege o rico, o grileiro, o ladrão; diante de uma sociedade que vê como normal a miséria e o abandono de famílias inteiras na beira da estrada; diante do opressivo preconceito que as pessoas da cidade manejam cotidianamente, o que fazer? Se vida não há, porque preservar um corpo? A lógica da simplicidade.

E os Guarani-Kaiowá colocam a sociedade brasileira diante de um dilema também. Salvá-los não basta. Definir uma terra para aquelas famílias não significa o fim do drama indígena no Brasil. O apressado movimento dos atletas de consciência em demarcar áreas para essas famílias em particular não acomodará as tensões que eclodem todos os dias nas áreas permanentemente em disputa entre indígenas e grileiros ou entre indígenas e Estado. Há que ultrapassar esse limite da resolução de um drama singular. Há que se colocar de frente com todos os conflitos. Há que se compreender a realidade indígena, conhecer seus costumes, seus deuses, seu modo de organizar a vida. Salvar os Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul não pode ser só um ato a mais de musculação de consciência, praticado numa situação específica, com um grupo específico. O drama indígena em “nuestra américa”, inaugurado com a valentia de Hatuey, atravessando perigosas ondas do Haiti até Cuba para anunciar a desgraça e conclamar a união na luta, não se esgota naquele grupo de homens, mulheres e crianças que hoje assumem a condição de cordeiros de sacrifício. Os indígenas não precisam de nossa pena, nem da nossa comiseração. Eles só precisam ser respeitados nos seus direitos e na sua vontade de ser quem são.

Os Guarani-Kaiowá estão a dar uma lição. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E aprenda!
 
 Elaine Tavares - Jornalista
http://eteia.blogspot.com.br/

terça-feira, 16 de outubro de 2012

É que viver é mais do que palavras


Se amanhã você me encontrar não finja que não me viu. Se amanhã a vida nos juntar não finja que foi por acaso. Se hoje você não me ver não finja que eu não existo.

Humanos em luta se amam sem razão. A razão sem emoção é só um rompante egoísta de quem não quer entender o que é sentir...

Osíris Duarte

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Dias de poesias

Hoje to naqueles dias que sem poesia morro a míngua. To pegando a saudade, a verdade e a bondade e colocando em um bolo de consciência pra o café da tarde. To fazendo versos e fazendo alarde, pra ver se lá no fundo de minha'alma encontro caridade. São dias depois de dias que fazem das minhas noites prelúdios de um amanhecer de nova sina. Hoje to naqueles dias que sem poesia vivo pela metade. Amanhã, quem sabe, terei mais um dia pra tecer sonhos em colchas de retalhos de texto, de palavras sem contexto, sem métrica nem adereço, só o preço de ser um Ser a crescer. Hoje to naqueles dias que sem poesia fico sem rumo, sem alegria.

Osíris Duarte 09.12.12