quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Em Cabo Verde existe tempo para o tempo

O vento sopra tão forte em Praia que o sino da igreja na zona do Platô bate fora de hora. Uma badala ao sabor do vento me trás à cabeça a sensação de que tempo em Cabo Verde parece ser algo trivial, sem muita relevância. Talvez o sino batendo de acordo com as rajadas do atlântico fosse a analogia perfeita dos critérios de tempo nessas ilhas da costa africana. Ao invés dos relógios e lógicas matemáticas do ser humano era a natureza quem determinava quando o badalo da igreja devia marcar as horas. Sem tempo para o tempo dos homens, mas com tempo suficiente para desprezar o tempo e fazer dos minutos apenas brisas durante as manifestações da existência.


A geografia de Cabo Verde é - para nós brasileiros acostumados com o verde de nossa terra - algo diferente e novo. O clima seco e o solo árido e pedregoso lembra as paisagens desérticas estadunidenses, ou até mesmo as regiões mais secas do semiárido do nordeste brasileiro. Mesmo assim é diferente, inesperado para alguém que nunca havia deixado o Brasil. A falta de àgua doce natural em todo o arquipélago, que se abastece de àgua desalinizada, junto com uma média de chuva de 8 cm por ano em algumas ilhas, fez com que Cabo Verde acabesse sendo um lugar dependente da importação.





As ilhas de Cabo Verde contam 10 no total, sendo 9 delas habitadas. Em Santiago, principal ilha do arquipélago onde fica a capital Praia, o relevo é escarpado, com morros que se juntam formando vales secos. Apesar do nome, o forte de Praia não é praia! Capital administrativa do país, a cidade conta com a beleza das construções portuguesas quase intáctas, muito devido a falta de recursos naturais da ilha, o que forçou a presevação do casaril. Além das construções históricas se come bem na cidade, cheia de cafés charmosos, praças bem cuidadas e dias de sol intermináveis, intercalados por um frio surpreendente a noite. Estando aqui vi como foi bom ter trazido roupas de frio porque, se não, fatalmente teria que comprá-las aqui. Tanto no Senegal quanto em Cabo Verde as temperaturas tem variado muito do dia pra noite.

Praia carrega um ar de paz e tranquilidade ideal pra quem - como eu neste momento - precisa de um pouco de sossego. Mas minha surpresa na cidade não foi tanto pelo tamanho da influência brasileira na vida dos caboverdianos, nem por ouvir todos os dias nas praças, bares e cafés Gilberto Gil, Caetano velozo, Chitanzinho e Chororó e até, pasmem, Sandy e Junior! Mas sim pela quantidade de chineses que se pode encontrar na cidade. Isso mesmo, chinenes! É como se para cada 3 habitantes de Praia houvesse um chinês. Com certeza isso é um exajero meu, daqueles que a gente faz pra descrever surpresa, mas realmente o número de mercados chineses e produtos made in China e de assustar. Já no avião, na saída de Dakar para Praia, uns 5 chineses conversavam na fila de embarque. No mercado cetral de Praia as únicas coisas - que não são coisas né - que não são chineses são os vendedores, na maioria Caboverdianos e Senegaleses.

A migração de senegaleses para Cabo Verde é algo que a polícia parece estar sempre atenta, aliás. No aeroporto, todos os senegaleses que estavam no meu voo foram barrados e ficaram esperando enquanto os outros passageiros passavam pelo posto de imigração. Muitos deles podem até terem sido mandados de volta para o Senegal. Casos de passaportes e vistos falsos também parecem frequentes. Tudo isso é um reflexo das condições melhores de vida e trabalho que Cabo Verde oferece em relação aos países africanos mais próximos, como o Senegal e a Guiné Bissau. Mas não se iludam, porque mesmo com condições melhores a pobreza e o desemprego são fatos em qualquer país africano, inclusive aqui.

Depois de 2 dias e meio em Praia, conhecendo as partes históricas da cidade, peguei mais um voo de assustar. Já na ida de Dakar para Praia, o avião - um bimotor de porte médio e em bom estado - balançava como um barco. Enquanto o comissário de bordo explicava os procedimentos de queda no mar eu me peguei prestando atenção nele, coisa que para quem já viajou de avião algumas vezes se torna repetitivo e chato. Pois dessa vez, em caso de necessidade, prestei atenção no sujeito, vai saber... O voo de Praia para Sal foi pior ainda. Aquela coisa bem mais pesada que o ar balançava como se fosse papel no vento. Mas depois da tenção, e do alerta de um colombiano a meu lado de que aquilo era normal, cheguei a salvo e inteiro.




Em Sal tenho falado mais inglês que português. É que, além dos inúmeros turistas da Itália, França, Reino Unido, Portugal e Espanha, a maioria dos artesãos são senegaleses que falam francês e inglês. Os africanos são muito inteligentes. Todos falam várias linguas e são donos de uma memória de dar invéja. Em Cabo Verde, além do português, fala-se creole, que é a lingua dos nativos. Assim como em Dakar, além do francês se fala Wolof. Mas devo voltar a memória prodigiosa dos africanos, coisa que vale a pena ressaltar. Basta falar uma vez seu nome que parece que nunca mais eles vão esquecer. A maior prova disso são os vendedores, que depois de dois ou três dias, quando você passa por eles novamente, te chamam pelo nome como um velho amigo que a muito não o via.

As belezas de Sal estão no mar. A ilha parece ser - assim como em quase todo o arquipélago de Cabo Verde - um paraíso do entretenimento marítimo. Com vento constante, o lugar é cheio de kitesurfers,windsurfers, sufistas, - por tem altas ondas aqui - pescadores, mergulhadores e velejadores. Com uma àgua azul turquesa de um tom que nunca tinha visto, transparente e cristalina, o atlântico de Cabo Verde parece até uma piscina. Parece mentira! As vezes fico pensando se isso não foi coisa de alguns "investidor" europeu - um dos muitos aqui - que mandou trazer a areia branca e encheu um buraco na costa de Santa Maria - cidade dos turistas e do agito em Sal - para poder atrair mais gente e construir as centenas de resorts chiques a beira mar que existem aqui. Como meu bolso não enche em Euro e meu gosto não é tão afrescalhado como o dos Europeus, fiquei em Espargos, Capital da ilha, há cerca de 12 quilômetros de Santa Maria.

Esses são meus últimos dias em Cabo Verde antes de ir para a Guiné Bissau, na sexta, dia 18. Ainda sinto na boca o gosto da água turquesa de Sal e das delícias das padarias de Praia. Mas tudo aquilo que vale a pena passa para deixar um gosto de quero mais e de saudade. Mesmo antes de ir já sinto falta daquilo que tenho no momento. Com certeza vou tentar adotar o tempo de Cabo Verde no meu relógio. Um tempo que tem tempo pra si. Um tempo que parou no tempo. Um tempo que mostra que já é tempo de abolir o tempo...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Aos cuidados do amigo Jeferson


Como um bom apreciador das coisas boas da vida, o meu amigo Jeferson Baldo (alemãozinho de Pomerode que se perde e se engasga com uma bela negra!) me fez um pedido - justíssimo! - para que eu retratasse as mulheres Africanas. Penso que falar não basta, então vejam por si a beleza dessas moças que, com certeza, as brasileiras herdaram! Taí Jenildo!










La force des Femmes

O Fórum Social Mundial têm comprovado a força da organização civil. No Senegal esta constatação mostra reforço todos os dias. Apesar deste fato, um seguimento em específico chama a atenção: as mulheres. Com espaços específicos de debate sobre feminismo, liberdade em contextos religiosos conservadores e machistas e organização pelo avanço dos direitos das mulheres, "les Femmes" têm tomado conta dos fócos de debate em Dakar. Mulheres de todas as partes do globo circulam pelas ruas com uma altives merecida, já que hoje elas representam a maior parte da força organizada na maioria dos países do mundo. Essa afirmação pode ser comprovada em uma volta rápida pelas ruas da Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar, onde de longe se pode notar que a maioria das organizações contam com um número maior de mulheres no seu corpo gestor. Também pode-se notar que, proporcionalmente, o número de organizações voltadas para a luta das mulheres pelo mundo é maior do que qualquer outro segmento.

O Sorriso da senhora Senegalesa

Um exemplo de uma das tantas mulheres que lutam por liberdade, não só "delas" como de todos, é Audrey Dye, uma francesa que mora na Bélgica e trabalha pelo "perdão" - se é que podemos assim chamar - da dívida externa dos países pobres do globo. Durante uma breve conversa o jornalista passou de entrevistador a entrevistado, pois Audrey fez questão de "testar" os conhecimentos do repórter brasileiro em relação a geopolítica, economia e direitos humanos. Sua primeira pergunta foi a respeito da crise financeira, suas razões e repercussões. Partilhando o entendimento dos movimentos sindicais e de militantes sociais, chegamos ao consenso de que a crise é uma invenção do Capital para manutenção de políticas de exploração e retirada de direitos trabalhistas. Sei que não descobrimos juntos a roda, nem inventamos uma nova interpretação sobre o tema, mas corroboramos com uma opinião que têm inplicações interessantes na construção de um novo olhar para a atual conjuntura global em termos de políticas economicas e sistemas políticos.

Protesto de estudantes da universidade contra taxas

Além da Franco-Belga, Senegalesas, Tunisianas, Panamenhas, Espanholas, Egípicias e outras tantas mulheres de todas as nacionalidades demonstram um grau de conhecimento sobre diversos temas que deixam muitos homens no "chinélo". Um outro exemplo interessante é que, assim como em muitos países, os bancos facilitam o ascesso ao crédito somente para as mulheres. Segundo as senegalesas, isso acorre porque os banqueiros confiam mais nelas, pois os homens - nem todos - gastam o dinheiro com bebida, jogo e... mulheres! Como responsáveis históricas pela criação dos filhos e gestão do lar, as mulheres têm se tornado o principal alvo de políticas de acesso ao crédito e fomento ao consumo.

Cartaz convidando para a marcha mundial das mulheres, na vila das mulheres

Uma reunião do Comitê de mulheres sindicalistas abordou justamente esse tema, além das bandeiras do feminismo. Com um olhar mais sensível e capacidade maior de administração, "elas" representam um futuro menos opressor. Quando Che Guevara disse: "ai que endurecer sin perder la ternura", talves ele se referise as mulheres, ou talves, quem sabe, ele tenha se inspirado nelas.

De Dakar, Osíris Duarte para sindicatos de SC

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Conflitos no Egito e na Tunísia e os desafios de uma cobertura inusitada


As barreiras impostas pela comunicação tendem a se diluir quando há disponibilidade de diálogo. A comprovação disso foi a entrevista feita na tarde dessa quarta-feira, dia 9, com um representante de uma ONG Egípicia e uma estudante de Arquitetura Tunisiana. Feita em três linguas - francês, Árabe e inglês - com a colaboração de jornalistas Canadenses, a conversa esclarecedora demonstrou o quão importante é estar disponível e aberto para entendimento mútuo, botando por terra barreiras polílicas e fronteiras.

protesto de Egípicios e Tunisianos no dia 09

A proximidade geográfica do Senegal com o Egito e com a Tunísia facilita a vinda de representantes desses países ao FSM. Todos os dias há protestos e mobilizações de representantes desses países pelas ruas do campus da universidade de Dakar. Foi em uma dessas mobilizações que surgiu a oportunidade de entrevistar Mohamoud El-Adawy, representante do Centro de Desenvolvimento para Consulta e Treinamento, uma Ong da cidade do Cairo. Quando perguntado qual é a atual perspectiva do povo Egípicio na luta pela queda do regime imposto pelo presidente Hosni mubarak, Mohamoud afirma com convicção que a única perspectiva aceitável e a queda de Hosni. Essa afirmativa reforça o quanto o povo Egípicio está firme na luta contra o atual regime. Mohamoud também reforça o quanto os egípicios estão unidos. Ele diz que na terça, dia 8, um protesto encabeçado por jornalistas egípicios para anular uma reunião ministerial se transformou em mais uma grande manifestação popular. Com um sorriso que espressava tristeza, o ativista egípicio diz que o atual governo é estúpido porque toma decisões que vão contra a vontade do povo, e isso que tem sido o principal motivo para as constantes manifestações. Com as restrições políticas no país, todos os partidos de oposição migraram para uma nova forma de organização em busca de reaver poder político. Agora, os partidos oposicionistas ao governo de Mubarak se tornaram todos Ongs.

Mohamoud El-Adawy, representante do Centro de Desenvolvimento para Consulta e Treinamento


O clima de conflito em alguns países africanos tem razões diversas e similares ao mesmo tempo. A estudante de arquitetura da Tunísia, Rym Klila, presente na mesma entrevista feita no meio da rua, explica que em seu país as motivações do conflito são mais por uma briga de gerações do que por razões unicamente políticas. Segundo Rym, a juventude tunisiana busca maior liberdade, liberdade essa tolhida pela postura conservadora das gerações mais antigas. A chamada revolução do celular demonstra o poder das novas tecnologias e da comunicação no ascesso a informação e na possibilidade de articulação. Foi através do aparelho - comum em todas as partes do mundo hoje - que jovens estudantes articularam os protesto em busca de democracia no país. O ascesso a internet também foi uma das razões para as transformações na consciência da juventude tunisiana.

A força demonstrada por esses povos reforça a necessidade de união em prol das lutas populares. Mesmo com Estados armados e repressores, essas pessoas têm consigo revolucinar a conjuntura política africana. Se torna cada vez mais difícil, em um mundo dinâmico e globalizado, manter determinadas políticas de opresão. As novas gerações têm hoje maior conhecimento e capacidade de articulaçãos que as anteriores não tiveram.

No final da tarde dessa quarta, 09, um grupo realizou uma passeata pela libertação desses países. A solidariedade de vários representantes de países de todo mundo podia ser vista nos gritos de Liberté Egipt, free Tunísia! Ficou no ar a sensação de que a lingua, a nacinalidade ou a orioentação política não dizem nada quando o motivo é liberdade e humanidade.

O que conta são as pessoas







terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Vida de Estudante

O fato das aulas na universidade de Dakar não terem sido suspensas durante a realização do FSM 2011 têm se mostrado mais uma oportunidade de aprendizado e vivência do que um contratempo. Com mais de 40 mil estudantes, vindos de vários países da África, a universidade é considerada umas das melhores do continenete e, com certeza, uma das maiores que já vi. Com mais de 70 hectáres, o campus é pulsante e lotado de jovens ávidos pela oportunidade de estudo. A falta de estrutura adequada parece não incomodar os estudantes, que em grande parte moram no próprio campus, em enormes residências universitárias. Mas isso é só uma aparência, porque incomoda sim.

No quarto de Alioune na residência universitária



No meu primeiro dia no FSM, perdido e confuso, assim como todos os participantes devido a falta de um programa - que só ficou pronto no meio da tarde de segunda - fui ajudado por estudantes voluntários no Fórum. Um deles era Alioune Badara, estudante de Letras. Não pensava que naquele momento confuso e preocupente, já que nem o acampamento eu tinha encontrado e me arrastava depois de quase dois dias sem dormir direito, estava fazendo um amigo. Alioune virou por livre iniciativa meu anjo da guarda, não me deixando só por sequer um minuto. Contar com o auxílio dele foi o melhor que podia acontecer, pois descobri aqui que as poucas aulas de Francês e o dicionário não ajudavam muito, assim a comunicacão se mostrava complicada. Alioune fala inglês e essa é a lingua que tenho usado aqui, além do português com os brasileiros e com o pessoal da Guiné Bissau.





Foi com Alioune que conheci um das várias residencias universitárias do campus. Com quatro andares esse complexo abriga mais de 7 mil estudantes. Foi lá que pude compartilhar com Alioune e seus amigos um pouco da vida desses rapazes e moças tão belos e prestativos. O primeiro ipacto é a quantidade de gente. Aliás, isso é em todo o lugar, não apenas nas residências. Subimos dois lances de escadas, em meio as paredes azuis e brancas, sujas e repletas de avisos e mensagens, até chegar ao quarto de Alioune. Com cerca de 2 metros quadrados, o quarto e dividido com 6 a 8 pessoas! Fico surpreso e pergunto como eles fazem para dormir em até 8 pessoas em um espaço tão apertado. Sorrindo Alioune me diz que dois dormem na cama de solteiro no canto e os demais se espremem em outros dois colchões no chão, que só são ajeitados na hora de dormir. Peço a Alioune para tomar um banho e ele me leva ao banheiro. No caminho jovens mulçumanos - que são cerca de 90% da população no Senegal - rezam nos corredores da residência, em pequenos tapetes, virados para Meca, a cidade sagrada do Islã, enquanto abrem e fecham as portas dos quartos em um ritual comum para os Mulçumanos. Não sei bem porque, mas já tinha visto aquilo em algum documentário sobre o Islã. Eles rezam, se levantam, abrem e fecham a porta do quarto umas três vezes, e voltam a rezar. O banheiro da residência é coletivo.O chão molhado encharca a barra da minha calça. De um lado os chuveiros e de outro os vazos. Mulheres e homens dividem todos os espaços da residência, menos os quartos. O convívio entre moças e rapazes é amigável e respeitoso, mas sem perder a naturalidade de uma boa amizade, com carinho e atenção, mas sem conotações sexuais veementes. As moças parecem mais fechadas, menos conversadoras, principalmente com um estrangeiro como eu, mas nada tão repressor e distânte como em países como o Irã ou a Arábia Saudita. O Senegal não é uma uma república islâmica, apesar de a maioria dos seus cidadãos serem mulçumanos. Aqui todos convivem pacificamente. Não há disputas de natureza religiosa ou étnica.

Para fazer o chá

Tenho um sentimento aqui de estar em casa. Não é clichê de negão brasileiro na mãe Africa, até porque aqui estou mais pra branco do que pra negro! Mas o olhar das pessoas, os sorrisos, a presteza em certos momentos servil, me deixou apaixonado por esse povo, tão sofrido e tão querido. A noite do meu primeiro dia no Senegal terminou com um chá na residência universitária - que dá um barato muito loco e é vendido legalmente - com Alioune e seus amigos, em meio a risadas e tentativas de conversas sobre futebol - é claro, os africanos são loucos por futebol brasileiro - sobre o ex-presidente Lula - que no mesmo dia discursou no fórum e afirmou que a Africa precisa investir em agricultura - e sobre a vida no Brasil e no Senegal.

Estou sinceramente encantado com a forma como os Senegaleses tem me tratado, a vida sofrida, mas feliz, a simplicidade do cotidiano desses milhares de jovens que para comer se aglomeram em filas imensas e disputam espaço de tigelas em punho nos RUs para fazer duas refeições no dia, me é familiar. Mas acho que o que é mais familiar e aconchegante, é o olhar desse povo, sua bondade, sua veracidade. Lembra o brasileiro. Queria eu agora fazer poesia com essa alegria que irradia dos Senegaleses e do povo africano, mas o micro aqui já pifou uma vez, já reescrevi o texto e o dia ainda me espera lá fora, cheio de histórias, que me deixam com lágrimas nos olhos só de pensar em contalas.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Cidade sem lei: o show acontece, mas a luta continua!

Por Elaine Tavares - Jornalista
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O filósofo Enrique Dussel tem uma definição de “comunidade” que é sempre bom a gente lembrar. Ele entende que quando se fala essa palavra não se está querendo dizer todas as pessoas de um determinado espaço geográfico, mas sim aquelas que num espaço geográfico participam ativamente da vida deste lugar. É por isso que - neste episódio envolvendo o show do Ben Harper/prefeitura/ Skol - quando se fala em comunidades do sul da ilha há que se ter bem claro que estamos falando das gentes que, vivendo no sul, se encontram, se mobilizam e atuam propositivamente dentro destes espaços, seja nas lutas pela infra-estrutura ou nas lutas macro-políticas como as da construção do Plano Diretor.
Assim, durante toda a última semana a comunidade organizada do sul da ilha esteve envolvida com a discussão da realização do mega-show do Ben Harper na praia do Campeche. Entendiam as entidades que toda a questão havia sido mal conduzida. A Skol realizou uma campanha via internet, sem consultar qualquer órgão público da cidade. Não houve articulação com a comunidade e muito menos foram seguidos os trâmites legais para a realização de um evento desta natureza. E aí é bom que se diga. O lugar onde agora será realizado o show é particular sim, mas este não era o local original do evento. Era a praia e a área de preservação permanente, espaços públicos e de proteção. Foi a luta da comunidade que acabou forçando a Skol e o proprietário do bar onde será feito o show a buscarem a legalização do evento.
Durante a queda de braço entre os grandes empreendimentos e a comunidade organizada do sul da ilha muita coisa foi dita. Nem vou falar das barbaridades da imprensa – principalmente o grupo RBS – porque todos sabem quais são os interesses desta gente. Seu negócio é o lucro. Não importa que para isso seja preciso destruir o modo de vida de toda uma comunidade. Mas, dentre as declarações, a que mais causou estupor foi a do proprietário do “Point do Riozinho”, o bar onde será realizado o show. Ele disse, num programa de rádio da CBN, que estava fazendo um bem para o Campeche e que as pessoas que estavam contra o show apenas defendiam interesses particulares. Ou seja, ele inverteu o assunto. A comunidade que desde há anos luta para manter seu modo de vida diante dos ataques do capitalismo e do progresso a qualquer preço foi acusada de defender “interesses pessoais”. E ele, um empresário que só visa o próprio lucro foi saudado como o benfeitor do bairro. Inversão total de valores.
Dois pesos e duas medidas
O presidente da Amocam, Ataíde Silva, lembra que o bar “Point do Riozinho” legalmente está na mesma situação que estava o Bar do Chico, recentemente derrubado pela prefeitura com o aval do “verde” Gerson Basso. Ou seja, o bar está localizado nos 33 metros da área de marinha, exatamente como estava o Bar do Chico. E só funciona porque a associação comunitária conseguiu garantir um ajustamento de conduta para que o empreendimento pudesse continuar por ali, exatamente como iria ser feito com o bar do Chico. Mas, o bar do Chico significava a preservação de um Campeche diferente, de vida simples, de natureza preservada, de eventos populares, de preservação da cultura local, de política, de luta comunitária. Por isso foi ao chão. Já o Point do Riozinho é a representação de um outro modo de vida, do consumo, do mega-show, da mercantilização da praia, da natureza tornada objeto de consumo, da festa privatista. É por isso que a comunidade se levantou em luta. Porque as gentes organizadas não querem isso para o Campeche nem para o sul da ilha.
Mas, a prefeitura mostrou muito bem qual é o seu plano para o sul. Desde o ano passado que pipocam por todas as comunidades os grandes empreendimentos imobiliários. Esgotados os recursos do norte da ilha, os abutres agora voejam pela região do sul da ilha. Como uma nuvem de gafanhotos as empreiteiras estão devastando as áreas e fincando prédios, sem qualquer preocupação com o ambiente ou com a sustentabilidade. O comportamento da municipalidade diante da investida da Skol mostra bem o quanto as comunidades estão desprotegidas. Sem qualquer respeito pela decisão da gente organizada do sul da ilha, a prefeitura, na pessoa do vice-prefeito João Batista Nunes, passou por cima de todas as regras para garantir que a Skol realizasse o show na praia do Campeche.
Para se ter uma idéia, se a comunidade desejasse fazer uma quermesse numa rua qualquer, ela teria de encaminhar uma série de ofícios, para uma série de órgãos, respeitando rigorosamente os prazos de antecipação, em torno de 20 dias. Sem isso, não há quermesse. Pois a Skol decidiu fazer um show na praia do Campeche, não consultou ninguém, não mandou ofício nenhum e, quando a comunidade foi para a rua questionar esse fato, eles então procuraram a prefeitura, com medo de que seu evento gorasse. E a prefeitura, numa atitude servil, desconsiderou qualquer prazo, qualquer trâmite legal e liberou todas as licenças. Por quê? Porque a Skol é uma grande empresa e tem muito dinheiro para dar.
A surpresa da noite
Nesta quinta-feira, dia 3, depois de receber o aviso de que a Câmara de Vereadores havia suspendido a sessão ordinária - onde as lideranças do sul da ilha iriam manifestar sua indignação e cobrar uma posição dos vereadores diante do absurdo praticado - a comunidade decidiu realizar uma reunião no Clube Catalina, Campeche. A idéia era fazer uma avaliação de todo o movimento e discutir novas ações para forçar o governo municipal a dar sequência ao processo do plano diretor, parado depois de um golpe efetuado pela municipalidade.
Durante mais de duas horas as pessoas falaram e avaliaram a luta. No geral todos entenderam como muito positiva a retomada do debate e da ação para a consolidação do Plano Diretor construído coletivamente que enfatiza e defende uma vocação para o sul da ilha. Durante quatro anos, as comunidades, em representativas reuniões, discutiram e deliberaram: a vocação do sul não é a do mega-turismo predador como o que destruiu o norte da ilha. Este é um espaço de moradia, de vida e também de turismo, mas um turismo que respeita o modo de vida das gentes que aqui decidiram fazer sua morada. Alguns jornalistas de boca alugada insistem em ridicularizar este jeito de viver, mas isso nada mais é do que a boa e velha pregação ideológica. Tal como dizia Marx, ideologia é o encobrimento da verdade. Assim, estes sacerdotes do capital jogam para a cidade a idéia de quem que está em luta são apenas “gatos pingados”, “bolivarianos”, “hippies”, “desocupados”, ou seja, gente inútil que não quer o progresso. Eles não, são os gerentes do progresso, os vassalos do capital, os que querem o “desenvolvimento”. Ora, a única coisa que se desenvolve nesta lógica predadora é o bolso de alguns.
Pois a surpresa da noite foi a chegada do vice-prefeito João Batista Nunes quando soaram as dez badaladas. Dando uma de bom moço ele disse que foi à comunidade para informar que tudo o que havia sido reivindicado estava providenciado. Todas as licenças haviam sido dadas e o evento iria acontecer sem qualquer problema de segurança, de transtorno ou de depredação ambiental. Ainda teve o desplante de dizer que, graças ao movimento feito, a prefeitura tinha tomado conhecimento do evento e, com isso, estava podendo oferecer toda a estrutura. Algumas pessoas presentes à reunião se indignaram e perguntaram: como a Skol havia conseguido as licenças num prazo recorde de quatro dias? Ele não respondeu. Mas disse que a cidade não poderia dizer não a um evento como esse. Ou seja, declarou em alto e bom tom que a prefeitura é refém desta gente. Depois, ainda não satisfeito com todas as críticas colocadas pela comunidade ele informou que a prefeitura iria liberar a realização do mesmo show também no domingo “para atender aos que ficaram de fora”, mas que este seria realizado no norte da ilha. “Houve muita expectativa”, afirmou. De novo, o absurdo. A Skol criou a expectativa de um show para milhares e agora estava em apuros. Aí, a prefeitura de Florianópolis vem e a salva.
“Estou aqui para dialogar”, disse Nunes. No que foi rebatido veementemente pelas pessoas presentes na reunião. Não era um diálogo. Tudo estava cumprido. A Skol comandou a ação da prefeitura, a Skol deu as cartas. A comunidade não foi ouvida nem respeitada. O interesse que prevaleceu foi o da empresa de cerveja. Ela burlou todas as normas, todas as regras, todas as leis. E ainda foi “ajudada”. Que mais pode ser dito sobre esta questão? Cada um que tire suas conclusões.
O fato é que a comunidade do sul da ilha vai seguir lutando. Segunda-feira, dia 07, estará outra vez na Câmara de Vereadores cobrando dos nobres edis o cumprimento das leis. Afinal, não estamos no velho oeste, onde a força estava na quantidade das balas das armas dos bandidos. Ou estamos?

Fonte: http://eteia.blogspot.com