quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Sobre abóboras, bruxas e sacis



Por Osíris Duarte

 Quando eu era criança - e olha que não faz tanto tempo em! - Natal era uma festa cristã, assim como a Páscoa. Festa junina, ou de São João, nome mais comum para nordestinos como eu, era expressão cultural de valor e, o folclore brasileiro, parte integrante das manifestações culturais na minha época, era bem presente no meu imaginário. Cresci lendo livros sobre Curupiras, Sacis e mulas sem cabeças, juntamente com aqueles deliciosos livros da Coleção Vagalume, como A Ilha Perdida, O escaravelho do Diabo... Todos redigidos por talentosos escritores brasileiros, voltados para o público infanto-juvenil. Mas cada vez mais percebo mudanças, que nem sempre me agradam, no consumo de conteúdo artístico, cultural e literário do jovem brasileiro.
  Para o educador, pedagogo, Paulo Freire, sociedades colonizadas ou invadidas culturalmente são sociedades alienadas. De fato, o que temos historicamente no Brasil é a manutenção de um processo colonial, com finalidade de manter na inércia o processo emancipatório da sociedade e do povo brasileiro, na busca pelo reforço e construção de valores coerentes com as origens étnicas e culturais da nossa sociedade. A forma predatória estabelecida pela colonização em terras tupiniquins – exploração econômica, escravidão, concentração das terras, mandonismos, falta de liberdade de expressão e de livre iniciativa – deixou uma herança nefasta na construção de valores dentro de nossa sociedade. 
  A falta de participação popular na vida pública do país ao longo da história, mantendo governantes em uma esfera de poder externo ao povo, os senhores das terras, os fiscais da Coroa, nobres membros da Coroa, etc, criou uma consciência hospedeira da opressão, consciência habituada a seguir leis e preceitos de outros em vez de consciência livre e criadora, necessária para um regime democrático. Mas, mesmo com a criação do Estado Democrático de Direito no Brasil, nunca houve o desejo dos governantes, sejam os colonizadores do passado ou os atuais, de estabelecerem aqui uma Nação e, “importar” as soluções, os modelos, inclusive valores, através da música, manifestações culturais, bens de consumo e modelos políticos seria uma solução.      
  Levar e conta o que nos define como povo é um processo de libertação e construção de unidade. Aquilo que nos define como indivíduo está diretamente vinculado ao que nos define como cidadãos e como povo. Problemas que afligem outros povos passam a ser nosso problema devido à reprodução de expressões culturais e sociais. Ao mesmo tempo virtudes e benefícios advindos de nossa terra e nosso povo vão sendo enterrados. O que me assusta, é que isso denota uma tendência para a entrega a escravidão, uma preguiça de ser brasileiro, de dar valor ao que nos definiria como Nação livre e soberana. De fato, os gringos valorizam nossa cultura muito mais que nós. Talvez seja por isso que valorizamos a deles: certa necessidade de autodepreciação, uma armadilha que dá a falsa segurança de que podemos nos eximir da responsabilidade de cuidar uns dos outros e de nossa terra.
  Quando pirralho, criança de nariz escorrido, eu brincava de índio, soltava pipa, e acreditava em estórias. E se hoje eu sei o valor de um indígena, da capoeira, do saci, da mata atlântica e da Amazônia... Se eu sei hoje o valor da luta das minorias sociais no país, sei o que é Brasil na carne e no sangue, é por causa de Machado de Assis, folclore, São João, forró, carnaval de rua, com esguicho de água e fantasia, bois e milho. Se hoje eu sou brasileiro, é porque fui privilegiado com a oportunidade de sê-lo, coisa que parece cada vez mais escassa. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A verve

A verve que fere as palavras lavra o campo vasto de intenções do espírito. E se por acaso não fizer boa colheita comigo, não há pesares que amorteçam certa frustração. Em verdade penso que não há má colheita, mas sim certa feita de imprecisões. O que há de mal é quando não há o que complementa a vontade lenta de juntar o que lhe foi dado, não deixando de lado o lado que cabe a cada corte, a cada responsabilidade de morte, a cada sonho em vão...  Não coloco de escanteio as falhas minhas. Se o fizesse seria um ignorante feliz, que caminha e malha a si quando não cabe mais usar argumentos. Mas também não desejo sorte, fico no aguardo do norte depois da tempestade que ainda grita nos meus ouvidos. Não perdi o tom, nem sou um embuste, mas é que nessa coisa de viver, há quem escute suas angústias e há que finja que não lhe cabe ser humano. De fato eu estou farto de solicitudes. Elas iludem quando o cada dia se torna luta solitária, de um pária, para aqueles que entendem como lamúria aquilo tão caro pra cada um. Minha realidade aturde meu senso, urge em consensos, mas se perde em meio as calhas, e escorre com a chuva. A  verve que fere as palavras lavra o campo vasto de pretensões e sentidos. E comigo arde a vontade de poder ser maior que minhas angústias, ao ponto de fazer pesar menos as angústias alheias em mim.  

Osíris Duarte