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Por-do-sol na praia do Araçagi |
Uma frase popular exprime bem a visita que fiz ao estado do Maranhão no mês de julho. Minha passagem por lá deixou comigo a impressão da história do cobertor curto: Cobre a cabeça, mas descobre os pés. Caminhando pelos lençóis maranhenses, pela Capital São Luis e pela cidade histórica de Alcântara, pude vivenciar uma das experiências de viajem das mais bacanas que já tive e, ao mesmo tempo, das mais decepcionantes. Mas antes de fazer observações nesse breve diário de viajem, devo antes ressaltar a beleza de um estado enorme, com natureza exuberante, povo verdadeiro e espirituoso e história rica e interessante.
Ao descer do aeroporto, peguei um ônibus para o centro da cidade, onde pegaria outro para chegar ao meu destino. Como nordestino que sou, com orgulho, já estava de certa forma habituado a ver as desigualdades gritantes que se mostram nessa parte do país. Diferente do Sul do Brasil, os problemas comuns aos brasileiros no Nordeste têm menos “maquiagem”. Ao mesmo tempo em que saltava aos olhos a herança do Brasil Colônia e o abismo social decorrente da mesma, existe um ar muito grande de veracidade humana. Nos olhos do povo, na conduta e maneira de lidar com o mundo, sempre há um ar de humanidade, sinceridade e desapego por coisas menores que, em muitos casos, é inexistente nos sulistas. Parece que aparência é algo mais difícil de manter no nordeste. A condição pobre e de desamparo com que a grande maioria do povo vive por lá lhes deu uma força de vivacidade que é muito mais rara de se encontrar por aqui. O Maranhense não é diferente nesse ponto. Vive mais leve apesar do peso grande que tem que carregar.
Logo em seguida à minha chagada ao estado, embarquei em um ônibus rumo ao parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. São cerca de 4 horas de viajem até a cidade de apoio ao parque, Barreirinhas. De lá saem às excursões para os Lençóis e é na cidade que fica grande parte das pousadas e serviços de atendimento ao turista. Em Barreirinhas as motos não têm placa e tão pouco se vê policiamento ou sinalização, mas ao mesmo tempo a minha sensação foi a de que nada disso é necessário por lá. Os lençóis são uma maravilha da natureza com a força de fazer com que eu ponderasse sobre a humildade. Dá pra sentir o quanto somos pequenos quando se chega lá. Fazer essa reflexão me levou para uma viajem íntima que me fez chorar ao ver o sol se pondo atrás das nuvens. Por tantas vezes somos por demais arrogantes, achando que entendemos os propósitos do mundo e que sabemos o que é correto. Por muitas vezes nos enganamos. Foi lá que revivi uma sensação de liberdade e felicidade, reconhecendo que fazer o melhor de mim nessa vida é mais do que muitas vezes achei que devia fazer. Bons valores, eu pensava... Chega de conflitos, pensava. Chega de revolta. A paz no meu coração foi algo aconchegante, como colo de mãe. Me senti coberto dos pés a cabeça pelos lençóis, nos braços de Deus.
São Luís: A Sarneylandia desvairada
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Busto do Sarney exibido em uma casa histórica no centro |
Na chegada a São Luís ouvi de um residente. - Tem uma coisa boa e uma coisa ruim no Maranhão: A ruim são os Sarney, a boa é ser da família Sarney. Que o contexto político do Maranhão é conturbado e sinistro, que o domínio da família Sarney é um suplício, todo mundo sabe. Mas confesso que não estava tão preparado assim para testemunhar a realidade maranhense. A coisa se mostrou muito pior do que eu imaginava. Depois de voltar já começo a achar Santa Catarina e Florianópolis primeiro mundo, assim como acham a maioria dos nordestinos, mesmo isso sendo uma mentira. Pra começar a “marca” da família Sarney está por toda parte. É bairro Vila Sarney, ponte José Sarney, escola com nome da mãe, do pai, do tio do Sarney... Inclusive ouvi histórias de áreas invadidas onde a própria população batizou com o nome da família na expectativa de algum benefício, dado o contexto de dominação e dependência política do estado. O cenário em São Luís é contraditório e desolador. Mesmo com um dos maiores centros históricos do país e com um mercado turístico com grande atividade, as construções da capital do estado estão em condições de abandono e precariedade funcional.
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Rua Feliz - Centro histórico de São Luis |
Grande parte delas está praticamente em ruínas, além da total falta de higiene no local. Nunca em minha vida tinha visto tanto esgoto a céu aberto. Pelas ruas de grande parte da cidade, não só nas regiões mais pobres, o cheiro de esgoto toma conta. São Luís tem mais de 1 milhão de habitantes e o esgoto da cidade sempre foi jogado para o mar, lagoa e rios. A lagoa da Jansem, um dos pontos turísticos da cidade, fede à distância, enquanto nas margens pessoas comem e bebem em bares e restaurantes. Problemas estruturais não faltam na cidade. Ruas sem meio fio, com iluminação pela metade, ônibus caindo aos pedaços, lixo pelas ruas... Foi à parte da viajem mais triste, as constatações. Do outro lado da Ponte José Sarney, na parte da cidade que se desenvolveu nos últimos anos, fiquei chocado com os presos das coisas. Apartamentos estilo classe média em Florianópolis custam milhões, sim, milhões de Reais. Os aluguéis ficam na casa dos milhares. A parte “rica” da cidade, apesar dos presos exorbitantes, e tão mal cuidada quanto à parte pobre. A especulação imobiliária na região chegou com força tal que extrapolou os limites do bom senso. Nem mesmo o custo em Balneário Camboriú, por exemplo, se compara. A analogia não podia ser melhor, do outro lado da ponte José Sarney existe outra cidade.
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Casa em ruínas. Umas das muitas no centro. |
A forma indolente, descompromissada e irresponsável como o povo maranhense é tratado pelo domínio político refletiu na própria construção social desse mesmo povo. Os serviços na cidade são muito ruins. Minha impressão foi a de uma má vontade generalizada. Ao pedir o cardápio em um restaurante na praia, a garçonete me olhou com uma cara de desdém que me fez perder o apetite. Não quero aqui dar uma de sulista exigente, não é isso. É que lá foi demais. Já viajei por quase todo o Nordeste e nunca tinha sido tão mal atendido. Não foram duas nem três vezes que me deparei com esse comportamento. Quando precisava pedir informação de algo sempre tinha dificuldade de consegui-la, pela falta de vontade de dar auxílio das pessoas. Na rodoviária, quase perco o ônibus pra Barreirinhas porque as duas atendentes – duas! – conversavam enquanto a fila aumentava. Com apenas duas outras pessoas na minha frente na fila, demorei quase 30 minutos pra comprar a passagem. Até no trânsito ficou clara a forma displicente com que o maranhense leva o cotidiano. Com ruas e avenidas esburacadas, mesmo com o asfalto novo, e sem sinalização, presenciei mais de 7 batidas de carro pela cidade. E pelo que fiquei sabendo isso é bem comum. Tipo bate-bate de parque de diversão. Falta de mão de obra qualificada é um problema em São Luís, e a grande maioria da população vive sem acesso a serviços essenciais. A cidade de mais de um milhão de habitantes tem apenas 2 hospitais. Não é a toa que o Maranhão ocupa um dos últimos lugares nos Índices de Desenvolvimento Humano do Brasil. Mas minha reflexão aqui não é taxativa e recriminatória, e contextual. Apesar da forma como o povo se porta por lá, não sendo a mais cortez ou atenciosa, há de levar em consideração a história de desamparo e descaso a que foram submetidos. E o Sarney ainda se diz orgulhoso do seu estado e do que fez com ele.
A Jamaica brasileira
No farol da preguiça, em Barreirinhas, um barqueiro Rasta ostenta as bandeiras do Brasil e da Jamaica no seu barco. As semelhanças entre nossos irmãos caribenhos e os maranhenses são enormes... Entendi o título do estado. O Maranhão, assim como a Jamaica, é um grande gueto, com desiguladades sociais gritantes. Em plena campanha eleitoral, os jigles dos políticos são ao ritmo do reggae. Nas ruas, dentro dos carros, as pessoas escutam versões de músicas diversas feitas para o reggae. Em Alcântara, Bob Marley está pintado na parede do restaurante, assim como nas ruas de São Luís ele é figura sempre prsente. O Leão de Judá aparece grafitado pelo centro histórico. Nas ruas existe a Sapataria Kingston, lojas de roupa com motivos Rasta, reggae nas casas na tarde de domingo... Foi em um sábado a noite que comprovei isso. No palco, Eric Donaldson, Jamaicano famoso tocava, em baixo mais de cem pessoas dançavam agarradinhas o som do Jamaicano, em um pequeno bar na beira da praia. Pra mim que sou fã da coisa, uma noite na memória ficou. A Tribo de Jah reçoava na minha cabeça no fim da festa, mais um dia se levanta na Jamaica Brasileira.
Considerações
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Lindo boi ornamentado - Festas de julho |
Mesmo com tantos problemas – iguais aos nossos aqui, mas em uma escala muito maior – o Maranhão é um estado incrível, cheio de beleza, franqueza e presteza. Talvez não naquilo que nos acostumamos na sociedade de consumo capitalista (ser bem servido, atendido, bajulado, aliciado, ser esteticamente bem encaixado), mas principalmente em relação à construção humana no contexto brasileiro. Apesar de tudo, as pessoas lá levam uma vida mais real, menos ilusória, mais prática. Exigir consciência política, atitude cidadã e postura ideológica de um povo que muitas vezes não sabe o que vai comer amanhã é tão hipócrita e autoritário quanto os discursos dos Sarney. A estratégia do desamparo manteve no poder esse senhor de 80 anos e sua família. A filha, seguidora número um da carreira do pai, continua no governo após um “golpe”, e agora concorre novamente ao cargo posando nas fotos ao lado de Lula e Dilma Russef. Nos carros a foto da tríade predomina no estado. Na minha ida fiquei com um gosto doce de liberdade ao mesmo tempo em que levava um amargo da opressão. Hoje, de volta a Florianópolis, faço uma reflexão mais crítica em relação a forma do comportamento e atuação social da população dessa ilha. Porque a ilha de lá, no nordeste, é tão bela quanto a nossa, mas a vida lá me pareceu mais viva, mais real. Numa realidade social com tanta dualidade, tanta contradição, nunca é possível reconhecer só a beleza, sem saber ver a feiúra. Parece que nossa noção do belo precisa de um paradigma feio pra se tornar realidade. Trouxe comigo uma bolsa de palha de Buriti, árvore nativa do Maranhão, pra dar de presente, mas trouxe algo muito mais substancial, trouxe comigo o gosto doce e amargo de ser brasileiro.
Osíris Duarte
Mte/PB 02538 JP
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