O que determina o olhar de um fotógrafo? Muitos podem afirmar com tranqüilidade que as condicionantes de um olhar residem na constituição particular de um indivíduo, o que explica apenas em parte o questionamento. Considerar o universo que pressupõe um ser humano pode acabar por descambar em conjecturas que não explicam mesmo o que determinou um ângulo, uma composição ou uma razão para registro documental. Para um jornalista, o olhar deve transpor o que é determinado apenas pela visão particular, no sentido de corresponder ao exercício da profissão que guarda expectativas quanto ao fazer fotográfico. Mas, mesmo assim, o ser humano continua lá, o ser político, ideológico, afetivo, continua lá. E é por isso que não existe um olhar único quando se trata da fotografia, assim como não há compreensão única quando nos prestamos ao exercício da crítica.
Estive na África em fevereiro de 2011 para realizar uma cobertura jornalística do 11° Fórum Social Mundial, em Dakar, Capital do Senegal. Mas meus planos tinham também o trabalho fotográfico como objetivo. Sendo assim, segui viajem a procura de imagens do continente africano. Passei por mais dois países além do Senegal e registrei com minha Nikon D3000 o povo e o continente africano, pelo menos na parte por onde passei. A viajem gerou, além dos textos jornalísticos, um trabalho fotográfico intitulado: Nosso Eu Africano – Uma viajem particular pelo Senegal, Cabo Verde e Guiné-Bissau. As fotos coloridas, impressas em papel fosco e dispostas assimetricamente na moldura guardam mais que uma concepção estética do trabalho fotográfico. Elas retratam através de uma simbologia as experiências e impressões que trouxe do continente, contando uma história que ficaria pela metade se fosse apenas com palavras.
O senso estético do africano está ligado diretamente às cores. A opção por fotos coloridas foi uma forma de retratar essa característica da cultura africana. Por todos os países que passei a noção de beleza convergia com a quantidade de cores presente nos adereços, roupas e construções. Além de retratar essa constatação que tive nas terras africanas, as cores ressaltam um olhar voltado para a beleza, não apenas para as mazelas do continente. A escolha do papel fosco para impressão também têm uma razão. Os países do norte da África têm um clima seco em sua maioria. A proximidade com o deserto do Saara e a localização geográfica determina esse clima na Guiné-Bissau e no Senegal. Em Cabo Verde, a falta de água no arquipélago determina a sequidão do solo. Por isso as fotos foscas. Uma alusão a secura do território.
Já a disposição assimétrica na moldura, um cartonado preto, faz menção ao contexto social, cultural e religioso da África, que não têm nada de simétrico e cartesiano. A pluralidade étnica, religiosa e social da África pode ser considerada, juntamente com o Brasil, uma das maiores do planeta. Retratar o continente de forma cartesiana, inclusive na apresentação das fotos, remeteria a uma idéia falsa da realidade da África, tão cheia de disparidades e contrastes.
A aproximação fraterna com os africanos facilitou e proporcionou a oportunidade para fotografar. A limitação técnica do equipamento também acabou por se mostrar como oportunidade. Com apenas uma lente 18-55 mm, fotografar pessoas sempre me obrigava ao contato próximo, me forçando a estabelecer uma relação com o modelo. Isso proporcionou, além de algumas fotos espontâneas - dada a relação mais íntima que se estabelecia - um maior grau de informação sobre a realidade dos países em questão, bem como sobre os próprios modelos. Tirando os casos de fotos “roubadas” onde o modelo não sabia que estava sendo fotografado, a maioria das fotografias exigiu certo grau de disponibilidade de troca e construção de relação. Nos casos onde a foto foi feita sem consentimento do modelo a priori, se fazia necessário uma conversa em seguida ao momento do clique, para justificar a foto para o modelo. Tais situações, seja por intenção ou por limitação técnica, são fundamentais para o repórter fotográfico, já que não é apenas com uma imagem que se traduz um olhar. Mais do que fotografar é preciso saber o que e porque se fotografa. Minha experiência na África me trouxe mais do que 800 fotos boas e cerca de 1500 cliques. Trouxe-me a certeza de que a fotografia, assim como o jornalismo, é um meio capaz de traduzir mais do que quando nos restringimos à palavra apenas. Trouxe-me uma sensação de vida, de parte de algo, que me impeliu para o registro. E essa “força”, propulsora de criação, foi o que fez de mim, nos instantes que passei por lá, um fotógrafo.
Fiquei com a certeza de que o que determina o olhar como fotógrafo determina o ser humano em questão. Até mesmo as responsabilidades vindas das escolhas profissionais são conseqüência da carga de valores, defeitos, aptidões e sentimentos que cada um de nós tem. Nossas escolhas estão condicionadas a mais do que uma bagagem técnica e de instrumentalização. E mesmo com essa carga de subjetividade, não deixa de ser uma forma fiel e credível de interpretar o mundo, já que para se considerar um mundo completo é necessário considerar-se nele. As histórias devem ser interpretadas inserindo o narrador, não abstraindo sua existência e influência no rumo da história que se conta sob o argumento de imparcialidade, já que isso não é possível se consideramos nossa condição humana tão diversa nos aspectos que compõe nossa existência.
Osíris Duarte - Jornalista e fotógrafo