Aquela imagem projetada no fundo do palco do Teatro Álvaro de Carvalho, de
uma laranja quase toda mofada, com apenas algumas partes da casca ainda na cor
original, sendo que o resto era tomado por um branco que se esverdeava em
algumas partes, enrugada como pele de senhora de idade, ficou rondando meus
olhos enquanto esperava por Michel Poivert. Doutor em história da arte, o Francês é
professor de história da arte contemporânea e da fotografia na Universidade de
Paris, foi presidente da Société Française de Photographie, é membro do comitê
de redação da Revue de l’Art e da Revue Études photographiques. Na platéia mais
de 60 pessoas esperavam para ouvi-lo e, é fácil afirmar, todos apaixonados pela
fotografia.
A presença do professor Francês foi promovida pelo Duo Arte e produção,
e integra o Floripa na Foto. A palestra se intitula “A fotografia contemporânea:
uma corrente artística ou cultural?” num sábado, dia 26, abordou de forma geral, as produções
contemporâneas a partir da década de 1980, tentando explicar a estrutura da
fotografia contemporânea de um ponto de vista histórico e crítico, insistindo
notadamente sobre as relações das novas imagens com as questões próprias da
modernidade, da história da arte e da informação.
Contemporânea... A que? Talvez esse questionamento resuma bem a
abordagem de Poivert sobre fotografia na modernidade. A capacidade mutante que
a fotografia tem, reinventando usos ao longo de sua história e da história da
sociedade humana, a perspectiva de fotografia como arte é o inicio da abordagem
do Francês, que afirma: A fotografia é contemporânea da arte. É claro que nessa
abordagem Poivert não encerra um entendimento global sobre fotografia na visão
da contemporaneidade, mas ilustra, com a fotografia experimental entre os anos
70 e 80, a busca por reproduzir os paradigmas artísticos, da pintura e da
escultura, nos trabalhos fotográficos.
No fotojornalismo Poivert observa o fenômeno da
estetização e da padronização da imagem jornalística, inclusive com a mesma
reprodução de simbologias da pintura e da escultura – Pietás, cristo
crucificado, naturezas mortas, retratos, etc. Bem como nas referência iconográficas e em uma construção semiótica da imagem jornalística. Tal referência ainda vigora até
hoje como um modelo de fotografia com peso artístico, premiada e reconhecida. Basta
lembrar do vencedor do Picture of the Year desse ano, o fotojornalista espanhol
Samuel Aranda, e sua Pietá do Yemen. Podemos ir mais longe um pouco na história
da fotografia, e lembrar a famosa foto da menina queimada na guerra do Vietnã,
feita pelo fotógrafo Huynh Cong "Nick" Ut, da Associated Press, que
reproduz um cristo crucificado, imagem clássica da arte ocidental, que
de certa forma pode explicar, além do peso dramático e histórico, seu sucesso.
Esses exemplos reforçam a idéia de Poivert das incursões da fotografia pelas
referências artísticas em seus diversos campos de atuação. A estetização da
imagem também é um sinal da busca dos fotojornalistas por uma construção
imagética que não só encerre o propósito do ofício de informar. Pode-se afirmar
que a estetização complementa o processo de informação obtida através da imagem
fotográfica, se não a sobrepõe. Poivert citou Sebastião Salgado como exemplo de
estetização da imagem informativa, de denuncia social. Sem entrar no mérito de
que se esse cuidado com a beleza da imagem ofusca a crítica, o exemplo de
Salgado, citado por Michel, serve como referência de uma visão da fotografia
que se vale dos paradigmas artísticos clássicos para se reinventar, ou mesmo
galgar seu espaço como forma de expressão artística no mundo da arte.
Mas a fotografia continua a galgar novos
espaços de experiência. Michel citou a retomada da fotografia documental nos
anos 90, também como forma de resgate, revisitação de velhas roupagens,
reinventadas ao longo do processo de afirmação da fotografia na história social
humana, até a busca nos anos 2000 por um híbrido da história, agregando novos referenciais.
Poivert falou sobre fotógrafos que buscam inspiração em cenas comuns a psicanálise e
a publicidade. Falou sobre a teatralização da fotografia, buscando referências
nas artes cênicas. "No século 19 se posava pela necessidade de um longo tempo de
exposição, hoje se posa por uma necessidade de teatralidade fotográfica."
O que se pode acumular da fala de
Michel Poivert, que se soma a autores como o também Francês, Andre Rouillé, na
busca por encerrar algum entendimento sobre a fotografia por um ponto de vista
da história, é que a fotografia acompanha as mudanças das sociedades humanas,
não só físicas, mas culturais, afetivas e intelectuais. Para Poivert, a
fotografia “propõe uma obra do modernismo, pensa o valor da arte e fala da
relação do real e do imaginário humano”. A fala do professor se restringiu a
uma abordagem de um recorte de 30 anos, 1980 até 2010, mas está contida nesse
recorte uma essência histórica da fotografia que denuncia suas tendências, sua
dinâmica. É como falássemos de o quanto muda a forma como vemos o mundo de
acordo com o tempo, espaço e contexto, e como se procede essa dinâmica no ser
humano. A proposição de Poivert guarda também uma característica fundamental
para mim no pensar a fotografia: A de que é um reflexão filosófica, mais do que de ordem
histórica, cultural ou técnica. O que vemos? O que fotografamos? Porque
fotografamos? São perguntas tão amplas como as que a filosofia propõe. No
final, a laranja podre, projetada como capa da palestra de Michel, pode ser
levada a esta reflexão filosófica, e acabo por pensar que aquilo que se degrada,
volta a natureza, e aquela imagem estática, congelada de uma dinâmica, que é a
degradação, acaba por me levar a considerar o tempo como não tempo, e a
fotografia como meus olhos que vêem um mundo diferente todos os dias.
Texto e fotos:
Osíris Duarte
Jornalista -Mte PB 02538
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