quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Exemplos


Por Osíris Duarte - Jornalista livre

Fui chamado por uma colega no começo do mês para prestar assessoria de imprensa freelancer durante a greve da saúde pública no estado. Topei. Foi assim que comecei uma jornada no mar do descaso público para com a população, e no lodo fétido da manipulação de informações promovida por uma imprensa prostituída. Me transformei novamente, pois viver é bem diferente de ouvir palestras sobre a “festa” na gestão pública brasileira ou sobre manipulação da imprensa a serviço da manutenção do poder. Antes era teoria, agora, estou cheio de exemplos.

A Saúde é um direito social, previsto na Constituição Federal. Zelar pelo bem-estar e pela vida é um das responsabilidades do Estado, que tem sua razão de existir condicionada a manutenção do atendimento e prestação de serviços comuns, que visam amparar o cidadão, parte integrante da sociedade que sustenta a máquina de gestão pública do patrimônio coletivo. A responsabilidade por aplicar o que prevê a constituição está nas mãos dos que são eleitos para gerir a máquina do sistema.

Durante a greve dos servidores da Saúde de Santa Catarina, no mês de novembro, certas contradições por parte do entendimento da responsabilidade sobre a precariedade e dificuldades no serviço ficaram claras na imprensa e nas explicações dos órgãos oficiais. A principal é justamente essa: De quem é a responsabilidade pela condição do sistema?

A política editorial de dois pesos e duas medidas de determinadas empresas de comunicação ficou clara durante a mobilização da categoria. Durante a greve a responsabilidade pela precariedade do sistema passou dos gestores para grevistas. É com responsabilizar o cobrador pelo preço da passagem do ônibus ou o professor pela falta de giz na sala de aula.

Durante mais de 10 dias, os servidores da saúde pública de Santa Catarina lutaram não só contra os usuais desmandos do poder, mas lutaram também contra a ignorância de muitos que preferem criminalizar o povo a cobrar dos responsáveis diretos pelo desrespeito para com a prestação de serviços a população: o governo. Com o auxilio de uma imprensa prostituída, que serve apenas a construção de uma opinião pública afinada com os interesses de pequenos grupos de poder, o governo estadual tentou, mais uma vez, tirar das costas o peso de suas atribuições.

Para quem depende do SUS, falar sobre as más condições do sistema é chover no molhado. Isso também se aplica para quem tem plano de saúde, já que a maioria deles enquadra cada usuário de acordo com quanto ele tem no bolso. Quanto mais rico, melhor o atendimento e o acesso aos serviços de saúde necessários. Tal realidade, que demonstra o acovardamento de uma sociedade acuada, oprimida pelos que detém o poder, só reforça o quanto precisamos avançar em termos morais e éticos, já que solidariedade social e fraternidade humana não são valores transitórios, de quem quer ser bonzinho perante Deus ou a sociedade. Esses valores permeiam as necessidades de convívio social e busca por um coletivo mais pacífico e harmonioso.

Após manipular por diversas vezes as informações, mostrando fatos montados a serviço da realidade da imprensa de “putas”, pagando atores para fingir mal estar em unidades e desinformando a população para justificar o comportamento autoritário de quem se aconchega em bancos de couro nos gabinetes do poder, a imprensa reafirmou de que lado anda nesse barco chamado nação. Lado a lado de quem assina os cheques.

Agora, são retomadas as matérias sobre o caos na saúde, com uma hipocrisia descabida de quem, em um espaço de dias, passou da atribuição de responsabilidade do caos de serviço para a greve dos servidores, para um triste fato comum de descaso social. Sim, porque agora não existem responsáveis. Agora a condição do SUS é um fato comum da realidade brasileira. Então, de forma penosa, jornalistas conduzidos como gado, retomam o discurso que ressalta os dramas da saúde estadual, sem se quer lembrar que a qualidade do serviço está condicionada a vontade política de quem antes era a “vítima” de trabalhadores em greve: O governo e a Secretaria de Saúde. Agora, sem ao menos ficarem vermelhos, muitos se colocam na condição de vítima da política editorial da empresa, em detrimento da manutenção de seus empregos. Prefiro os que distorcem por ignorância dos que se calam, e consequentemente concordam, por mero egoísmo e individualismo.

Já ouvi de colegas jornalistas expressões de revolta a respeito de como a RBS, por exemplo, tratou editorialmente do tema. Colegas de dentro da empresa. O que me causa revolta é saber que por covardia, ou simplesmente por comodidade, a maioria corrobora com as mentiras propagadas pela empresa que lhes paga, tudo a serviço da falsa sensação de segurança no emprego e garantia de um salário pífio no fim do mês. É triste saber o que o caráter desses meus colegas tem preço, e de banana.

Depois da suspensão da greve, e das inúmeras patuscadas promovidas pelos veículos da RBS, por exemplo, recebi uma das ligações mais cínicas da minha vida: A do comercial da empresa, querendo oferecer a venda de espaço para comunicados do sindicato. Talvez tenha sido porque desde a tomada de posição da RBS em favor do governo, o SindSaúde tem optado pela concorrência, no que diz respeito a publicações legais e comunicados.

Alguns dados para reflexão de como manipular o discurso:

1 – Revisão salarial não é reajuste. A palavra reajuste é usada indiscriminadamente porque atrela o ponto ao conceito de acúmulo ou acréscimo, coisa mal vista pela população. No caso dos servidores da saúde, tanto os 114% quanto os 16,76% não são percentuais de reajuste, são apenas correções e revisões. Os 114% foram concedidos pelo governo como forma de se enquadrar na Lei, já que um servidor de nível médio na saúde do estado ganhava menos de um salário mínimo antes da correção, o que não é permitido por Lei. Depois de várias ações na justiça, movidas por servidores, pedindo a complementação salarial - todos ganhas - o governo fez o ajuste, que elevou o piso para R$ 760,00. Uma fortuna né! Já os 16,76% é o índice de reposição da inflação anual, prevista na Lei 323/06 no seu artigo 100. A inflação aumenta e a correção passa a ser um benefício? Não dá pra entender... Lembrando que além da questão salarial, hoje o déficit de servidores na saúde do estado chega a 3 mil trabalhadores.

2 – Dor de ouvido, de cabeça, curativos e pequenos casos NÃO são competências das unidades de urgência. De acordo com o pacto do SUS, assinado pela SES, apenas os serviços de urgência e emergência, e os de média e alta complexidade, são responsabilidade do estado e governo federal. Os atendimentos de menor complexidade são atribuições dos municípios, ou seja, dos postos de saúde e unidades municipais. Mas por incompetência ou maniqueísmo, muitos repórteres apenas relatam os casos que não foram atendidos, sem ao menos apurar as razões e o que diz a lei.

3 – O estado está um caos, as enchentes esvaziaram os cofres, não temos dinheiro. O governo alegou, no início da greve, que se atendesse as reivindicações da categoria, que apenas cobrava o cumprimento da Lei, não fecharia as contas do estado. No entanto, para aumentar o teto do Executivo Estadual, havia dinheiro. A revisão salarial dos servidores da saúde aumentaria em 7 milhões anuais as despesas dos cofres público, ao passo que o aumento do teto do executivo, que inclui o salário do governador, onera os cofres em 39 milhões.

4 – Fotos de portões com correntes, pessoas com membros enfaixados e grevistas de costas. Foram muitos os casos de manipulação semiótica nesta greve. Revoltados com a abordagem da RBS, por exemplo, em relação ao movimento, os trabalhadores da saúde pintaram cartazes de protesto a empresa e penduraram em todos os piquetes. Quando um repórter ou cinegrafista do grupo chegava ao local, todos viravam as costas em protesto a forma como estavam sendo retratados nas páginas dos jornais e nas notícias de tv e rádio da empresa de mídia. Então, qual era a manchete no dia seguinte? “Grevistas viram as costas para a população”. Outra manchete comum nesta greve foi: “Greve prejudica Atendimento”. Como se fora da greve o atendimento fosse ótimo, sem prejuízos. O uso de pessoas, que adoecidas gritam sua revolta contra o sistema, nas páginas dos jornais também foi um fato comum. Como já disse antes, casos de pequena complexidade não são responsabilidade das unidades estaduais e federais. Portanto a senhora com dor de cabeça reclamando nas páginas dos jornais que não foi atendida no hospital, não deveria nem estar procurando o atendimento ali. Mas, como quase ninguém conhece o que diz a Lei do SUS, muito vão para as unidades somente para ouvir a orientação de onde procurar atendimento. Nos hospitais da Capital, carros de secretarias de saúde de todo o estado chegam para trazer seus doentes, porque nos municípios o atendimento não é garantido pelos gestores, como manda a Lei. Outro ponto ressaltado foi o do tempo de espera para atendimento e para realizar consultas e exames. Se na greve um paciente esperava 4 horas para ser atendido, fora dela a média e de 3 horas, um diferença e tanto em?! Além disso, aguardar três meses por uma consulta e anos para uma cirurgia transcende o período da greve, não é?

Bem... Esse é um desabafo de um profissional de comunicação, com um diploma que não vale nada, com um discurso parcial, que defende bandidos, como usualmente se referem aos trabalhadores brasileiros, e com uma voz que ecoa sozinha, em alguns casos. Não é um material de defesa do Sindicato ou uma produção encomendada pela direção da entidade. É um desabafo mesmo. Por que exemplos de falta de respeito, manipulação e autoritarismo não faltam, escolha o que você quiser. Quando os encastelados do poder usam suas garras por meio “Justiça” para fazer valer sua condição de “Senhor Feudal” as pessoas se acovardam, porque “se sobrar pra mim eu to fora”. O problema é que SEMPRE sobra pra mim, pra você e pra quem está fora do joguinho. E ao invés de sonhar em ascender de classe, como pensam muitos brasileiros, pensássemos na partilha, no direito comum, quisá a “Justiça” não precisasse de aspas. Quisá eu ficasse só na teoria, não cheio de exemplos.



Um comentário:

  1. ei querido.. o texto está ótimo..bom ver vocês assim, cara a cara com a realidade e narrando-a...
    Siga firme. há que gritar..sempre...
    elaine

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