sábado, 26 de dezembro de 2009

Na Parahyba se faz com o sol o que se faz com a vida – parte 1

Como é seu nome? Peraí que vou lhe ensinar como se faz: Como é sua graça, por favor? Como é sua graça, por favor? Perguntei então. Bráulio Ferreira. Respondeu do alto da sua cadeira de rodas o senhor no asilo dentro da Mata do Amém, uma reserva florestal as margens do Rio Paraíba, em João Pessoa. Fazem apenas três dias que retornei é já aprendi uma lição que não vou mais esquecer.

 Certos resgates se fazem em momentos que não compreendemos bem, por estarmos demasiadamente absorvidos pelo viver aqui e agora. Ao mesmo tempo outros resgates são imediatos e se mostram no exato momento em que acontecem. Já se passaram mais de três anos desde que estive aqui, de onde escrevo, da minha terra natal. Depois de ir e voltar, para depois partir novamente, retornei com mais certezas do que quando me fui das terras paraibanas. Parece que está tudo no mesmo lugar, como deixei, apesar das coisas não serem as mesmas. Rever a família e descansar foram os propósitos desse curto regresso, mas não se pode regressar a algo que nunca se abandonou, mesmo que apenas no coração.

 Noite de Natal. Essa fiz questão de passar com voínha. Dona Netinha continua a mesma pessoa: complacente e prestativa, quase serviçal. Sentir o cheiro dela e da casa do meu avô reaviva um memória antiga que nunca se apagou, somente dorme. Depois da festa, sem a presença da família dividida por brigas fúteis de quem se ama e se odeia ao mesmo tempo, fui para casa de Emmy, minha prima e minha melhor amiga, para de lá fazer um programa familiar diferente.

 No centro histórico de João Pessoa, em meio às casas construídas durante a ocupação dos holandeses, eu revivia um programa que fiz muito quando morava aqui, curtir um som no Intoca. O bar é em uma casa antiga, perto do Hotel Globo, de onde se pode ver um dos espetáculos mais famosos da cidade: o pôr-do-sol no Rio Paraíba. A noite era de Natal do Jazz, só com bandas locais incríveis. A cultura Nordestina é algo tão presente na vida das pessoas aqui que quase se pode tocá-la nas esquinas, nos rostos, no ar... Músico aqui é profissional, “duro”, mais profissional. A noite começou com Cabeça de Galo, passou por Néctar do Groove e terminou alucinante com o show de Burro Morto. Ao fundo, nas grandes janelas do galpão antigo, nos fundos da casa, o dia foi amanhecendo na curva do rio, iluminando a mata ciliar que corre ao logo dele, na parte do centro da cidade. Entrei em catarse naquele momento, era como se nada mais existisse além daquilo.

 Amigos são a família que a gente escolhe. É o que dizem. Foi nas escadas da igreja do centro histórico, onde meu tio foi seminarista até desistir, que me reencontrei em conversa com alguns bons. Depois da noite de música e sonhos, a manhã foi vendo o dia brilhar no mar da praia do Cabo Branco. Na areia fiz uma oração, molhei as mãos, os pés e a nuca e agradeci com meu coração: Obrigado PAI! No fundo via a Ponta dos Seixas, ponto mais próximo da África no Brasil, então relembrei que sou Paraibano, Nordestino e humano, graças...

Nunca tinha vista em minha vida tantos carros como vi agora em João Pessoa. A cidade parece que cresceu mais rápido depois que eu saí daqui. Me reencontrar com uma Jampa ainda governada pelo PSB, com o prefeito Ricardo Coutinho reeleito com uma das maiores porcentagens do país, 80%, não foi surpresa. Também regressei depois de sair com um Cunha Lima no governo estadual - tucano de mais uma geração de políticos da mesma família. Dessa vez vi uma outra figurinha carimbada da roda viva da manutenção de poder familiar da política nordestina, um Maranhão. Depois de Cássio Cunha Lima ter sido cassado por compra de votos na eleição, o concorrente, José Maranhão, foi empossado, deixando sua vaga no Senado Federal para assumir a batuta do estado, mais uma vez.

 Vi na TV que a Estação Ciência, uma obra do estado e do município e mais novo ponto turístico da cidade tinha sido interditada, em plena alta temporada, por falta de documentação no projeto de drenagem superficial e ligação com a rede de esgoto. Meu Tio Duca, que assistia comigo disse: vê como as coisas são políticas, nem saneamento e rede de esgoto tem nessa área ainda! Mas aqui, diferente da realidade catarinense que vivo hoje, não há máscaras quando se trata em entender as relações de poder e as falcatruas polícias. Aqui todo mundo sabe quem é quem e porque faz o que. Mas mesmo com a “putaria” as claras, como eles aqui dizem, o status quô predomina dentro de um conformismo cultural.

 O povo Nordestino, pelo menos os daqui, é muito mais prático nos termo da vida do que no sul. As impressões que as pessoas fazem do Brasil são tão ilusórias e carregadas de preconceito que não consigo me confortar com a idéia de acreditar que conhecimento teórico é algo indispensável para uma leitura correta do que é vida social. Vejo atitudes de pessoas simples e, por muitos, consideradas alienadas e ignorantes, carregadas de uma sabedoria prática que tantos, mesmo com todo o amparo da teoria, não conseguem ter. Se a prática sem a teoria é manca – acho que Paulo Freire disse algo parecido – a teoria sem a prática é cega. Pra mim, hoje, a atitude de coerência sob os aspectos humanos mais essenciais deve vir antes de qualquer coisa, mesmo quando não amparada pela teoria. É que determinadas coisas são necessárias mesmo sem a gente entendê-las ainda, muito mais necessárias do que achamos. Inteligência não é uma questão apenas de conhecimento racional, é o equilíbrio entre o ser emocional, espiritual e racional. Isso não apenas contempla a minha condição de se colocar com humildade e admitir minha pequenês, mas reafirma uma existência indissociável da realidade que não é baseada apenas no materialismo fatalista e egocêntrico, que desconsidera uma existência que vai muito além de sociedade, cultura ou história, que transcende nosso restrito mundo dos sentidos e dos fatos terrenos.

 Na Mata do Amém, chegamos e já tirei minha câmera, louco para fotografar. Logo veio um homem, vestido de segurança dizendo: Senhor, não pode bater foto aqui. Perguntei por que e ele respondeu: Foi proibido pela coordenadora fulana de tal – não lembro o nome dela. Junto comigo uma amiga geógrafa, Andréia, disse: mas meu amigo, aqui é área pública, não pode proibir. E ele, humildemente, retrucou: são ordens da dotora moça. Pelo menos andamos um pouco, cruzamos a linha do trem que vai para Cabedelo, cidade portuária que antigamente era movimentada pela pesca da baleia, hoje quase morta economicamente, recebe visitantes para ver o Forte de Santa Catarina, com mais de 200 anos, construído para defender a foz do rio que dá acesso a Capital. Foi lá, na Mata do Amém que descobrimos o asilo onde seu Bráulio me ensinou uma lição. Qual é sua graça, por favor? Nunca vou me esquecer disso. Será que é porque quando perguntamos um nome ele deve ser uma graça? Será porque ele me dá seu nome de graça quando peço? Será que é pra dar mais graça a vida, aos humanos que se cruzam e fazem questão de saber seu nome? Só podia ter isso, essa lição de viver, na Mata do Além, de um homem chamado Bráulio. Que no acaso de um regresso me fez lembrar que viver é de graça, o que é caro é morrer sem viver.


Osíris Duarte 27/12/09

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